sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

"The Shack", de William Paul Young

   Há que confessar que não tenho grandes conhecimentos acerca do autor deste livro, para além de o admirar pela simplicidade e simultânea complexidade com que descreveu Deus, a religião e a relação do Homem com Deus. É canadiano e publicou “The Shack” com uma editora criada por si e por amigos próximos. 
   “The Shack” é um conto de fadas pincelado de momentos de tortura e grande desgosto. Trata-se de uma história com enredo simples e de poucas personagens – pouco ou nada de complexo havia a esperar de um conto que retrata a vida familiar de um casal com três filhos. 
   É só quando nos “aproximamos da janela do quarto” que vemos de que laços se compõe esta família. O pai Mackenzie (mais conhecido por Mack) é um filho não amado – cresceu num ambiente de violência e de culpa, carregando consigo a maior culpa de todas. Nan, por outro lado, é uma mulher doce, crente, que consegue desatar e organizar todos os nós do coração do marido, sustentando assim o lar com amor e paciência. O casal tem três filhos: Josh, Kate e Missy – dois adolescentes e uma doce criança que teima em fazer perguntas importantes. 
   A história desenrola-se com a naturalidade da vida familiar. Surge, na normalidade de uma rotina, a ideia do pai levar os três filhos a acampar, como uma maneira de os manter em contacto com a natureza e para criarem laços mais profundos entre si. A viagem é planeada sem grandes complicações – um fim de semana de pai e filhos. 
   Num fim de semana em que tudo poderia só correr bem, na tentativa de salvar o filho Josh de se afogar, Mack depara-se com o rapto de Missy – que mais tarde iria culminar no seu assassinato numa cabana abandonada no meio da floresta.
   A partir daqui a vida de Mack é tomada pela “The Great Sadness”, tornando cada dia mais difícil que o anterior, numa caminhada lenta em direção ao precipício da culpa. Sem nunca ter obtido resposta, um dia, Mack encontra na sua caixa de correio um bilhete de um “Pappa” a pedir que este fosse de novo à cabana. 
   “Pappa”? Este termo era apenas usado por Nan, na privacidade da sua casa, para se referir a Deus. Teria Deus enviado um bilhete a Mack? Seria uma piada do assassino? Voltar à cabana onde descobriu o destino da sua filha? Ir ter com Deus? 
   “The Shack” é uma leitura leve mas que precisa de ser bem sentida, onde devemos permitir que a nossa fragilidade nos leve além do texto escrito. 

Citações:

“Don’t ever discount the wonder of your tears.”

“Forgiveness is not about forgetting. It is about letting go of another person’s throat.”

“I don’t need to punish people for sin. Sin is its own punishment, devouring you from the inside. It’s not my purpose to punish it; it’s my joy to cure it.”


Pontuação: 6.8/10


Carla Sofia Eiras

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

" O que Fazem Mulheres", de Camilo Castelo Branco

   "É uma história que faz arrepiar os cabelos". Assim começa mais um vernáculo, criativo, cáustico e inovador romance camiliano. 
   D. Ludovina pretende casar por amor. A sua mãe, D. Angélica, depois de uma admoestação sobre como o amor e o casamento são duas coisas distintas, consegue convencê-la armadilhando o pretendente a confessar a sua falta de interesse real em Ludovina. Assim, Ludovina aceita casar com o pretendente escolhido pelo seu pai, João José Dias. Casados os dois, as peripécias seguintes da vida de casado põem a nu as incongruências dos institutos da sociedade portuguesa oitocentista. Já as personagens do romance prendem-se numa fatalidade evitável, fechados nos lugares-comuns do mal de amor do período romântico que enquadra esta narrativa. A história do romance é esta, assim simplesmente exposta. Mas este romance não é a narrativa que o compõe, mas a crítica mordaz e irónica que Camilo Castelo Branco brilhantemente dispensa sobre tudo, desde os atos supérfluos dos seus personagens aos institutos sociais que emolduram as relações entre eles. 
   O estilo do romance é uma modalidade que era muito praticado na época da sua escrita: o folhetim. Mas este romance em folheto de Camilo apenas assim é como forma de sátira de Castelo Branco ao folhetinismo. O resultado final não é apenas uma maravilhosa sátira do ultrarromantismo de cordel, mas é também um romance muito diferente da sua época, ensaiando uma interatividade com o leitor e uma autorreferência tão consciente que parece um romance pós-modernista, dos que se escreveriam meio século após a morte deste autor, demonstrando mais uma vez a clarividência literária de Camilo Castelo Branco, faceta que não lhe é muito reconhecida fora dos meios literários, infelizmente. O tom do romance é jocoso do início ao fim, não escapando às lunetas perspicazes de Camilo nenhum aspeto da sociedade que o rodeava. Desde a hipocrisia dos virtuosos à mesquinhez dos justos, desde as imposições sociais à mulher até às auto-imposições acéfalas delas entre elas e dos homens entre eles. Apesar de a narrativa ser superficialmente ultrarromântica, em todo o seu fatalismo melodramático, o tom jocoso da crítica cedo nos demonstra que, tal como Eça de Queirós, a trama apenas tem essa função: mover a história. As descrições carregadas de ironia dos personagens ajudam a que nada do que eles fazem ou dizem seja levado a sério, causando o efeito curioso de o leitor revirar os olhos às atuações impulsivas e fatalistas dos protagonistas, contribuindo para tal o tom cáustico com que o autor nos narra as peripécias. O vernáculo de Camilo Castelo Branco continua um dos mais abrangentes da literatura portuguesa. Curiosamente, mesmo os verbetes rebuscados que Camilo utiliza contribuem para o tom irónico geral. Um pormenor muito humorístico que também contribui para o tom irónico do romance é um certo antitabagismo de Camilo, resultando do tabaco a única vítima mortal de um romance que, numa estética ultrarromântica, encerraria com todos os seus protagonistas finados. Muitas passagens ao longo do romance, e um capítulo em concreto, demonstram em Camilo também já uma certa sensibilidade feminista, ao explorar a condição da mulher perante o casamento e a sociedade, e ao dissecar as artimanhas patriarcais para a remeter ao seu lugar submisso. 
   Em termos formais, destaca-se no romance, novamente de forma a parodiar o modelo folhetim, uma série de capítulos adicionais, incluindo um "Capítulo avulso - Para ser colocado onde o leitor quiser", "Cinco páginas que é melhor não se lerem" - um capítulo muito engenhoso - e um posfácio em que Camilo relata uma última peripécia depois da última, parodiando a serialização em que o romance de folhetim muitas vezes se encerrava. Através de notas de rodapé e interpelações diretamente feitas ao leitor (ou à leitora), Camilo cria o tal pré-pós-modernismo patente no romance. Outra marca do pós-modernismo, a metalinguagem, marca presença, nomeadamente através de o narrador constantemente fazer referência ao facto de estar a escrever o romance, e de relembrar constantemente que o seu romance é um folhetim e que por isto ou por aquilo tem defeitos ou qualidades, entre as quais, ironicamente, a sua verosimilhança com a vida real. 
   Em suma, uma paródia humorística do romance ultrarromântico de folhetim feito por um dos expoentes máximos dessa estética literária. Uma leitura camiliana obrigatória para quem deseja conhecer este autor para lá do Amor de Perdição ao qual ainda hoje é teimosamente amarrado. 
 
Citações:
 
"João José Dias devia orçar pelos seus quarenta e cinco anos. Era de estatura menos que meã, adiposa, sem proeminências angulares, essencialmente pançuda, porque João José tinha uma série descendente de panças, desde a papeira cor-de-rosa até às buchas das canelas ventrudas."
 
"Disseram os filósofos e moralistas, uns, grandes santos como S. Paulo, e outros, grandes ateus como Voltaire, que a mulher é um ser exuberante de sensibilidade, e apoucado de raciocínio.
   Daí vem o denegarem-lhes acesso às ciências abstratas, às políticas, aos parlamentos, ao magistério, às regiões intelectivas do maquinismo social, e mandarem-nas cuidar dos filhos, e fiar na roca.
   Se o absurdo vinga, se, por alvitre grosseiro do mais forte, a mulher é um ente inepto para exercitar a razão, com que direito as julgamos e sentenciamos, segundo a razão, sendo as suas culpas demasias de sentimento. 
   A injustiça é flagrante e odiosa.
  Privam-nas de razão para as excluírem das funções que a requerem; sentenciam-nas pela razão, se o sentimento, seu dom essencial, as desvia do piso demarcado por ela."
 
"O leitor já sabe como no teatro se recupera o juízo. Se é mulher a doida, rigorosamente desgrenhada, esfrega os olhos, atira com as madeixas para trás, e dá fricções secas às fontes com frenesi; se, homem, abre a boca, espanta os olhos, soleva o peito em arquejantes haustos, despede o grito agudo obrigado a ambos os sexos, e está pessoa de juízo, capaz de casar, que é quase sempre a pior das doidices em que os autores fazem cair os seus doidos, restaurados para a razão."
 
 
Pontuação: 8.7/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

"Terra Sonâmbula", de Mia Couto

   "Naquele lugar, a terra tinha morto a estrada." é a frase que abre o potentíssimo romance de Mia Couto, considerado não só a sua melhor obra, mas um dos doze melhores livros africanos do século XX (atribuição do júri da Feira do Livro de Zimbabué em 1992). 
   Tuahir, um velho, e Muidinga, um jovem, caminham pelos destroços de uma estrada, que os leva às ruínas de um autocarro (no texto, machimbombo, que, no português moçambicano, possui a polissemia de autocarro e carripana), onde ambos encontram guarida. É junto a um dos cadáveres dos passageiros do mesmo autocarro que Muidinga descobre um conjunto de cadernos escritos por Kindzu. A partir desta descoberta, duas narrativas seguem paralelamente, a de Tuahir e Muidinga, cuja constante companhia os protege da inclemência de uma terra em guerra, e a da jornada de Kindzu, que parte da sua terra natal em busca das artes mágicas para proteger a sua família do flagelo que vitima Moçambique. No entanto, os caminhos paralelos de Kindzu e de Tuahir e Muidinga parecem muito mais entrelaçados do que se poderia ter pensado, e os destinos de ambas as demandas estão, na verdade, mais próximos de si e da terra chorosa que os sustenta. 
   Terra Sonâmbula é um romance muito potente. Com a sua característica mestria, Mia Couto relata-nos, numa prosa carregada de poesia, a dor dilacerante de uma terra em autofagia, descrevendo-nos as vidas miseráveis das pessoas comuns face ao flagelo de uma guerra civil. Após a guerra da independência, Moçambique esteve mergulhado numa longa guerra civil, e os efeitos traumáticos que ainda hoje se sentem foram cristalizados no imaginário literário pela mão de Mia Couto, no ano em que se deu oficialmente o fim daquela guerra civil. A atmosfera que circunda o romance é de realismo mágico, com a arcana africana como guia e motivadora. Os laços que unem Tuahir e Muidinga superam a terra rasgada em duas, ambos se unindo por necessidade, mais do que de sobrevivência, de terem um outro em quem depositar os pesos do mundo. A nação moçambicana é um protagonista silencioso, mas presente, sorumbática devido à guerra que a esventra. Se a viagem de Tuahir e Muidinga representa a dureza da realidade, a demanda de Kindzu é onde encontramos o elemento mágico, como reação da própria Moçambique ao que andam a fazer-lhe, mas mais como esperança de tempos menos lacerantes. Muidinga lê a Tuahir os cadernos de Kindzu, e nos trabalhos deste encontram um escape e uma sombra dos seus próprios trabalhos. As duas narrativas que correm em paralelo surgem-nos uma a seguir à outra: um capítulo relata as inquietações de Tuahir e Muidinga, o capítulo seguinte relata as peripécias de Kindzu, entrelaçando as duas como se de uma dupla hélice se tratasse, quase representando como a guerra e a esperança, o duro realismo e a promissora fantasia, constituíram o ADN de um país e de um povo. Os neologismos que são apanágio de Mia Couto encontram algumas das suas melhores concretizações neste romance, abrindo a língua portuguesa a um universo inteiro de significados, algo pelo qual o autor sempre fez por empreender, numa consistente busca por traduzir o intraduzível em palavras. 
   Sem sombra de dúvida, um dos romances obrigatórios da literatura de língua portuguesa, e um dos essenciais de Mia Couto. 


Citações:
 
"A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si." 

"Fui para o convés, molhado até dentro dos olhos. A chuva redigia suas gordas gotas, hesitantes entre trovoar e tropousar. As nuvens se acotovelavam, sem gentileza. Podiam se tocar, pedirem desculpa e continuar caminho. Enquanto não: brigavam, cuspiam lumes, resmungos celestiais. Será que aprenderam dos homens as impaciências terrestres?"
 
"Vendo bem, o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo o resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa mortuária. Ao meio-dia um grupo de soldados veio remover o corpo. Arrastou-lhe pelos pés, ao longo da estrada. Aquele era o funeral que cabia ao anónimo desvalido: poeirando pela rua, as moscas zunzinando, contratadas carpideiras dos ninguéns."
 
 
Pontuação: 9.9/10 


Gonçalo Martins de Matos